MATOS, Júlia S. A ARTE E A MITOLOGIA NA GRÉCIA ANTIGA. (Palestra conferida na Escola de Belas Artes de Rio Grande)

Júlia S. Matos*
Entre as civilizações antigas a Grécia é consideravelmente uma das mais fascinantes para o mundo ocidental cristão. Muitas de nossas estruturas sociais, políticas e culturais são heranças deste antigo povo. No presente artigo, pretendemos discorrer sobre a constituição deste povo e sobre suas contribuições artísticas e culturais para a sociedade ocidental.
A história da Grécia é dividida pelos estudiosos, como Moses Finley, Marvin Perry entre outros, em cinco períodos. Cada fase possui peculiaridades culturais deste povo em formação. No entanto, antes de estudarmos cada período especificamente, precisamos olhar para um povo que viveu antes dos gregos e que muito os influenciaram: os cretenses. Este povo vivia na ilha de Creta e o que sabemos a respeito deles foi descoberto graças às escavações realizadas pelo arqueólogo britânico Arthur Evans em 1900.
Os cretenses foram pacíficos, estruturaram-se em um sistema político talassocrata, ou seja, quem governava eram os marinheiros. Por viverem em uma ilha, os cretenses eram extremamente dependentes da navegação e do comércio marítimo. Desde muito cedo, comerciavam com os fenícios e desenvolveram um sistema palaciano que serviu de base para a civilização grega. Seus palácios, segundo Marvin Perry, abrigavam famílias reais, sacerdotes e funcionários do governo. No interior destes palácios eram instaladas oficinas para a produção de recipientes de prata lavrada, adagas e cerâmicas de uso doméstico.
Entretanto, o apogeu minóico sucumbiu às invasões de tribos de língua grega, os primeiros foram os aqueus e os jônios, oriundos da Tessália, estabeleceram-se em burgos no Peloponeso e na Grécia central. Por volta de 1700 a.C. os aqueus já haviam tomado os centros continentais de Creta. Os cretenses foram facilmente dominados, pois suas cidades não tinham fortificações. Não falavam língua grega, mas sua arte e cultura foram amplamente absorvidas pelos aqueus, formando assim a civilização micênica. A arte cretense ou minóica[1], era muito rústica, mas a partir dela os gregos puderam desenvolver seus métodos de representação do mundo. Em Micenas o povo deu tanta importância para a arte cretense que chegou a contratar artistas para reproduzirem os ornamentos minóicos em sua arquitetura, cerâmica e ourivesaria. Diferentemente da sociedade minóica, os micênicos eram guerreiros e suas cidades eram fortificadas. Desta forma, a partir da ascensão da cidade de Micenas por volta de 1400-1230, temos a primeira fase da história grega. Suas cidades possuíam grandes muralhas e portões para protegê-los de invasores. Conforme demonstra as figuras 1 e 2:
[1] Eram chamados assim devido ao seu rei ser intitulado Minos, Rei lendário de Creta, filho de Zeus e de Europa. Ordenou a construção de um labirinto para castigar sua mulher e o monstro Minotauro gerado por ela em suas relações com um touro.




De acordo com J. Storch de Gracia, a arte minóica era severa, vitalista, curvilínea, colorida e voltada para a natureza, além de ser impregnada pelo sentimento religioso. Características que foram o ponto de partida para formação da arte micênica. Os micênicos desenvolveram um fabuloso conjunto de lendas como a luta entre Teseu e o Minotauro[1] ou de Dédalo e Ícaro[2], amplamente representadas em suas pinturas e cerâmica.
Os anos que se seguiram foram de grandes transformações, desencadeadas pelas invasões dóricas, ou heráclidas. Os dórios tomaram as cidades micênicas e escravizaram seu povo. Este período intermediário entre o fim da civilização micênica e o período Homérico, foi marcado pela regressão cultural, supressão da escrita e estagnação econômica.
Mas, a partir do século VIII o mundo grego volta a florescer sob a égide dos poemas homéricos. Ancorado sob os feitos micênicos, Homero, um rapsodo[3] que viveu por volta de 800 ou 700 a. C. [4], compôs suas epopéias Elíada e Odisséia, as quais auxiliaram a moldar o espírito e a religião dos gregos, conforme nos afirma Marvin Perry. Entretanto, para Maria Lúcia Aranha “As ações heróicas relatadas nas epopéias mostram a constante intervenção dos deuses, ora para auxiliar um protegido seu, ora para perseguir um inimigo. O homem homérico é presa do Destino (Moira), que é fixo, imutável, e não pode ser alterado. (...) A virtude do herói[5] se manifesta pela coragem e pela força, sobretudo no campo de batalha, mas também na assembléia, no discurso, pelo poder de persuasão”.[6] As epopéias de Homero mantiveram-se vivas através da filosofia, das tragédias e da arte gregas. A passividade dos homens frente às forças divinas está bem representada na trilogia edipiana de Sófocles, composta séculos mais tarde.
Homero foi o poeta que forjou o espírito grego e, segundo Werner Jaeger, sua obra revela uma preocupação com o homem e suas realizações, ou seja, a origem do humanismo grego. No mesmo período viveu Hesíodo, entre os séculos VIII e VII, outro poeta que, de certa forma, completou o trabalho iniciado por Homero. Hesíodo produziu sua Teogonia (teo: deus; gonia: origem) que relata as origens do mundo e dos deuses, afirmando que as forças da natureza são manifestações das próprias divindades.
Em Ilíada e Odisséia encontramos a Grécia homérica, apesar de o poeta contar a guerra de Tróia acorrida por voltas do século XII no período micênico, os costumes e cultura apresentados são próprios do século VIII. A sociedade grega fundamentava-se em clãs, ou genos. Estes eram formados pelos descendentes de um mesmo antepassado, que viviam de forma autônoma sob a liderança do pai (pater-famílias). Juntos cultuavam aos antepassados e sua justiça era baseada nos costumes. A economia destes genos baseava-se na administração da casa e no trabalho coletivo.
O fim deste período foi provocado pelo crescimento dos genos e sua conseqüente desintegração. A divisão das terras deu origem à propriedade privada e a subdivisão social, antes amparada em três grupos os eupádridas, os georgóis e os demiurgos, que no período arcaico foi ampliada para cinco grupos os eupátridas, com as melhores terras, formando a aristocracia, os georgóis com as terras menos férteis nas montanhas, os demiurgos responsáveis pela produção artesã e comércio, os metecos estrangeiros artesãos e comerciantes e os escravos, originados dos espólios de guerra.
O período arcaico foi marcado pelo ressurgimento da escrita, pela desigualdade social, pelo desaparecimento da unidade familiar e a formação de uma nova unidade política, através da união de tribos e vilarejos. Esta união deu origem a Cidade-estado, a polis grega.
A arte neste período deixou lentamente o estilo geométrico grego e, característico da fase homérica, voltou-se para motivos originários do oriente, transformação provocada pelo contato dos gregos com egípcios. Difunde-se na Grécia rapidamente os estilos dórico e jônico, que deixaram as características de supervalorização da força na escultura geométrica e voltaram-se a retratação em bronze e mármore de jovens, leões, cães e sobretudo de monstros como: centauros e esfinges[7]. De acordo com Heródoto, nesta fase formou-se na Grécia uma verdadeira “Egiptomania”.
O período seguinte é o clássico iniciado a partir do século IV e V a. C. Esta fase assistiu ao mais alto desenvolvimento cultural e material na Grécia antiga. O evento que marcou fortemente este momento foi o conjunto das Guerras Greco-pérsicas. A principal causa desta guerra foi a política ofensiva de Dário I, rei persa, que em sua expansão dominou a Fenícia, Lídia e uma série de colônias gregas na Ásia. Esta invasão despertou em Atenas um sentimento de solidariedade que a fez lançar-se em defesa de suas “irmãs”.
A Grécia era símbolo da cobiça de Dário I por estar dividida em três importantes regiões as pastoris (Épiro, Arcânia e Etólia), as agrícolas (Tessália, Beócia, Lócrida, Fócida e Estados do Peloponeso) e as Cidades-estado, centros comerciais e manufatureiros (Atenas, Corinto, Egina, Megara e Mileto). Nesta época existiam em Atenas as oficinas familiares, pequenas empresas como padarias, curtumes e fábricas de instrumentos de música. Seu sistema de trabalho era aprimorado pela divisão do trabalho, como nas metalúrgicas, com as divisões das tarefas. O período clássico foi testemunha do desenvolvimento dos grupos de artesãos, marinheiros e comerciantes. Entre os séculos IV e V a vida e trabalho gregos estavam sustentados pelo sistema escravista. Estes escravos eram vistos como corpos simples, objetos, a soma, instrumentos de produção.
Apesar da convulsão causada pela guerra, a filosofia grega teve grande ascensão, conforme Moses Finley. As tragédias, devidamente amparadas pelas reflexões filosóficas, eram apresentadas em Atenas durante os festivais de teatro. Entretanto, neste mesmo período de ascensão da democracia ateniense e decadência da polis grega pela guerra, os gregos perderam sua fé nos mitos. Muitos, influenciados pela presença judaica em seu território passaram a adorar mais enfaticamente a Zeus, outros apenas a Baco, o mais popular entre os deuses. Um reflexo deste processo de descrença é a arte do período extremamente profana, debochada, com a representação ridicularizada dos deuses.
O período clássico termina após a dominação de Alexandre, o Grande, com sua morte e fragmentação de seu império. Sua morte deu início a quinta e última fase da história grega, chamada helenística, na qual Roma ascendeu e absorveu a cultura grega. O florescer romano e o esgotamento grego devido às guerras reduziram este povo a posto de província.

BIBLIOGRAFIA
ARANHA, Maria Lúcia de Arruda. Filosofando: introdução a filosofia. 2 ed. São Paulo. Moderna, 1993.
FINLEY, Moses. Os gregos antigos. Lisboa – Portugal. Edições 70, 1963.
MORAIS, Cíntia. Maravilhas do mundo antigo: Heródoto, Pai da História? Belo Horizonte. Editora UFMG, 2004.
OHLWEILER, Otto Alcides. A religião e a filosofia no mundo grego-romano. Porto Alegre. Mercado Aberto, 1990.
PERRY, Marvin. Civilização Ocidental: uma história concisa. 2 ed. São Paulo. Martins Fontes, 1999.
STORCH DE GRACIA, J. J. A arte grega (I). In: HISTÒRIA DA ARTE, 7, HISTÒRIA 16. Madri, 1990.

* Professora de História Antiga e Medieval na Fundação Universidade Federal do Rio Grande - FURG, mestre em História e coordenadora do GPHA - Grupo de pesquisa de História Antiga.
[1] O Minotauro alimentava-se de jovens gregos doados todos os anos pelas cidades a Creta. Teseu revoltado com tal situação, ao completar 16 anos e conseguir levantar a espada escondida de Egeu, foi a procura do pai disposto a destruir o monstro. Teseu foi para Creta como um dos jovens a serem sacrificados, mas ajudado por Ariadne que lhe deu um novelo de lã para não se perder no Labirinto, matou o monstro e saiu com seus amigos. No entanto, seu barco esquece de tirar a bandeira de luto e Egeu ao vê-la, desespera-se e joga-se no Mar, que recebeu seu nome.
[2]Segundo a mitologia grega, em seus primeiros anos a vida do arquiteto Dédalo (em grego, engenhoso, hábil ou criador) foi um ato de descobrimento dos materiais, formas, volume e do próprio espaço. Sentindo-se superado em talento pelo sobrinho e aprendiz Talo, matou-o e fugiu. Em Creta, na corte do rei Minos, uniu-se à escrava Naucrates e com ela teve um filho, Ícaro. Minos lhe encomendou a criação do labirinto de Cnossos, que deveria conter a fúria do Minotauro. Mais tarde, o arquiteto e seu filho são lançados no labirinto.Dédalo, no entanto, com seu engenho inigualável, constrói para si e para o filho dois pares de asas de penas, ligadas com cera, para fugirem. Recomenda ao menino que não voe muito perto do Sol nem do mar. Mas Ícaro, deslumbrado com a beleza do firmamento, sobe demasiado e o Sol derrete a cera de suas asas, precipitando-o nas águas do mar Egeu. A ilha aonde seu corpo foi levado pelas ondas ganhou depois o nome de Icária.
[3] Cantores ambulantes que davam forma poética aos relatos populares e os recitavam de cor em praça pública.
[4] A datação do período homérico é extremamente inexata, por isso é fixada entre 900-750 a. C.
[5] Em Homero encontramos a origem do ideal grego de Arete, excelência, bravura e habilidade na batalha.
[6] ARANHA, Maria Lúcia de Arruda. Filosofando: introdução à filosofia. 2 ed. São Paulo. Moderna, 1993, p. 63.
[7] As imagens gregas desta fase eram de bronze douradas, em mármore ou de outros materiais pintados. A imagem que temos da arte grega sempre branca é herança do renascimento.