MATOS, Júlia S. Da ascensão do cristianismo à desintegração do Império Romano: O nascimento da Era Feudal. Porto Alegre, 2007.

Por Júlia Matos[1]

“Indubitavelmente a História se faz com documentos escritos. Porém também pode fazer-se, deve-se fazer, sem documentos escritos se estes não existem. (...) Portanto, com palavras. Com signos. (...)Em uma palavra: com tudo o que sendo do homem, depende do homem, serve ao homem, expressa o homem, significa a presença, a atividade, os gostos e as formas do ser do homem”. (Lucien Febvre, Combats pour l’histoire, Armand Colin, Paris, 1953, p. 428).

1.1 A DIVISÃO DA HISTÓRIA E O SURGIMENTO DO TERMO IDADE MÉDIA

A disciplina de História, enquanto ciência humana, é constantemente moldada e reconstruída, é alvo de inúmeras discussões teóricas. De geração em geração, a ciência histórica parece abandonar a pele que lhe envolve e adquiri outra, como uma serpente, a fim de se renovar e permanecer viva. Seus métodos e fontes são reavaliados e criticados com freqüência e sua divisão em grandes períodos é fruto da eleição, por historiadores, de marcos divisores que demonstrem rupturas entre a temporalidade das sociedades, demarcando suas transformações. Mas, diante de tantas escolhas e eleições individuais, podemos nos perguntar: a História quadripartida como estudamos de fato apresenta rupturas entre seus períodos? Aonde terminou a História Antiga e iniciou a Medieval? Quais heranças o homem medieval recebeu da antiguidade?
No presente artigo, temos por objetivo analisar a formação da Era Feudal, como assim chamaremos nesse trabalho, suas heranças do mundo romano e do cristianismo, quais as semelhanças com a antiguidade e seus distanciamentos, visando assim, identificar as características identitárias desse período. Para tanto, iniciaremos com uma breve discussão sobre a nomenclatura do período e logo a seguir analisaremos o processo de transformação ou “desintegração” do mundo antigo e o nascimento dessa nova Era.
Antes de tudo, é preciso considerarmos que a História começou a ser escrita a partir dos eventos presentes, como forma de preservação da memória, se considerarmos as obras de Heródoto, Tucídides, Políbios ou Tácito, entre outros. Não podemos negar que figuras como Plutarco recorreram a memória de grandes Líderes como Alexandre Magno para enaltecerem homens do presente e seu olhar era voltado para o antigo e para o presente. No entanto, a partir dos séculos IV e V d. C., conforme estudo de Jean Glénisson (1979), com a ascensão da mentalidade cristã os estudiosos entenderam ser necessário uma divisão da História baseada nas escrituras.

O profeta, efetivamente, interpretara neste sentido a visão atribuída a Nabucodonosor: uma estátua, com a cabeça de ouro, o peito e os braços de prata, o ventre de cobre, as pernas e os pés de ferro, parte de barro (Daniel, II, 31-46). Explicação semelhante dera ele à sua própria visão, em que lhe apareceram, surgindo do mar, o leão com asas de águia, o urso, o leopardo e um quarto animal, ‘espantoso, terrível e fortíssimo, dotado de dez chifres’ (VII, 3-28). Os historiadores cristãos viram aí a sucessão das quatro monarquias universais: assírios-babilônios, medo-persas, macedônios e diadocos, romanos. O Império de Roma não deveria ter sucessores: a manutenção de um Santo Império Romano Germânico, o Império de Bizâncio, permitiam fazer-se coincidir a realidade com a teoria. (GLÉNISSON, 1979:43-44).

A mentalidade cristã, entre os séculos IV e V d. C. influía nos rumos dos estudos históricos produzidos e conforme nos afirmou Glénisson na citação acima, a divisão quadripartidária apareceu não para facilitar o entendimento da História da Humanidade, mas para encaixa-la nas profecias de Daniel. Mais adiante, entre os séculos VI e VII, o seguidor de Santo Agostinho, Isidoro de Sevilha dividiu a História em seis idades: a primeira seria de Adão até Noé; a segunda, de Noé a Abrão; a terceira de Abrão a Davi; a quarta de Davi ao cativeiro babilônico; a quinta seria até a encarnação do Salvador e a última, na qual vivia duraria até o fim do mundo. Esses dois sistemas foram empregados durante muitos séculos e segundo Jean Glénisson, somente foram abalados a partir do surgimento das histórias nacionais por volta do século XIII. Surgia, assim, uma historiografia dinástica que se consolidou até o século XVI como a nova forma de divisão histórica. Entretanto, o economista e filósofo francês do século XVI, Jean Bodin optou pela adoção de três períodos da História. Esses tinham como característica a valorização dos traços psicológicos dos grupos raciais, além de observações antropológicas, climáticas e geográficas. Esse traço, percebemos como, característico nos estudiosos humanistas, que abandonaram as “... as velhas repartições do tempo nascidas na Bíblia” (GLÉNISSON, 1979:45), e tenderam apenas para a distinção entre antiguidade e tempos modernos.
Em meio a essa transformação no olhar histórico, apareceu nos trabalhos do professor da Universidade de Halle, Cristóvão Keller, a distinção de três períodos na História. Sua idéia ganhou forma em suas obras História Antiqua (1685); História medii aevi (1688) e uma História nova (1696). Essa divisão de Keller, segundo Marc Bloch (2001), não era novidade, vinha em formação a pelo menos duzentos anos. Para o historiador, o termo “idade média” tinha origem no vocabulário do profetismo semi-herético que pregava o fim da velha Lei com a Encarnação do Salvador, o estabelecimento do reino de Deus, e a esperança do dia bendito que esse retornaria. Sendo assim, o tempo presente era apenas uma idade intermediária, um médium aevum. De acordo com Bloch, o termo surgiu com uma característica positiva que foi desviada pelos humanistas. Esses afirmavam ser a “idade média” um “intervalo de ignorância entre a antiguidade clássica e o reaparecimento do culto das belas-letras, no fim do século XV e começo do XVI,” (GLÉNISSON, 1979:46). Conforme discutem Bloch e Glénisson, o termo idade média foi utilizado pela primeira vez sob um olhar religioso para interpretar profeticamente a História e em seus desdobramentos foi resignificado, como forma de expressar forte crítica ao sistema opressor que a Igreja vinha impondo.
O termo não possui pai determinado, muitos indicam Hartmann Schedel médico alemão que em 1493 escreveu seu Opus de Histotiis eatatum mundi e inseriu um capítulo intitulado De progressu Imperii ac translatione in Germanos”, como seu inventor, outros a Giovanni Andréa de Bussi, Bispo de Aleria, que empregou o termo “media tempestas”, em uma edição romana de Apuleu, a qual dedicou ao Papa Paulo II, ou ainda os inúmeros estudos como de Bloch e Glénisson sobre as possíveis origens da expressão. Sem nascimento determinado o que vale para o presente estudo é que a Idade Média ou Era Feudal não foi entendida pelos homens de seu tempo, mas pelos estudiosos que a analisaram posteriormente, dessa forma, cabe a cada um de nós percebemos quando ela nasce e quais heranças carregou da antiguidade. Nesse momento, poderíamos nos perguntar: Mas por que então dividir a História? Para responder a tal questão, o historiador inglês R. G. Collingwood (1986), afirmou que o emprego da periodização e da interpretação à História sinaliza o amadurecimento do pensamento histórico, que para ele, é não somente capaz de precisar, como também de julgar.
Todavia, a História ganhou na contemporaneidade uma divisão quadripartidária, com datas estabelecidas e eventos eleitos como fronteiras entre os períodos demarcados. Tradicionalmente, a Idade Média ou Era Feudal, é dividida em Alta e Baixa Idade Média, a primeira iniciaria no século V e a segunda no século XI e terminaria com a ascensão das grandes navegações no século XV, mais precisamente com a queda de Constantinopla em maio de 1453, conquistada pelo Império Otomano, liderada pelo sultão Maomé II. Nesse sentido, nossa preocupação é demonstrar que não podemos estudar a História como se seus períodos fossem independentes, na verdade é fundamental que façamos retrocessos temporais em nossas análises a fim de compreendermos o processo de formação das estruturas dos eventos eleitos.
Portanto, para estudarmos a Era Feudal, entendemos necessário retornarmos a supressão da República e fundação do Império Romano, em meio a conseqüente ascensão do cristianismo.
1.2 AS RAÍZES DA ERA FEUDAL E DO CONCEITO DE ORDENS

Para falarmos de nascimento de uma nova era, primeiramente precisamos considerar os vestígios de transformação da mentalidade social do período. Nesse sentido, atentemos para a estrutura tripartida da sociedade medieval, diferente da romana que em primeiro momento dividia-se apenas em plebeus e patrícios, que se funda muito antes do século V, pois é na desarticulação do sistema republicano e fundação de uma mentalidade de ordens que encontraremos as raízes que perseguimos. Dessa forma, as origens das principais características da Era Feudal podem ser encontradas no processo de desestruturação da República romana, momento que podemos perceber o nascimento do conceito de ordo nessa sociedade. Na Roma republicana não é difícil encontrarmos a seguimentação social e a primitiva formação de um conceito de ordo, conforme passaremos a analisar.
Em seu processo expansionista, conforme estudo de Catherine Sales (2002), Roma permitia que suas províncias mantivessem suas identidades econômicas. Essa diferença entre as regiões anexadas criou uma interdependência entre as províncias e as metrópoles, pois dependiam das últimas para o escoamento das mercadorias. O sistema econômico interdependente gerou grandes acúmulos de riquezas para Roma. No entanto, o expansionismo afastava o camponês da terra e em conseqüência formaram-se grandes propriedades com produção voltada para o mercado. A formação desses latifúndios gerou o êxodo rural e o aumente do proletariado urbano.
Nesse processo de expansão da República romana, constituíram-se dois grupos distintos: os senadores e os cavaleiros. Em 218 a. C., conforme nos afirma Ohlweiler (1990), o grupo de cavaleiros tentou refrear o enriquecimento das senadores e superá-los através da aprovação da Lei Claudia, que proibiu ocupantes de cargo no senado e seus filhos de possuírem navios com capacidade de transporte superior a 80 hectolitros[2].
Esse foi apenas o primeiro passo para o aumento de poder do grupo eqüestre, ou cavaleiro. Em fins do século III, os cavaleiros eram escolhidos para ocuparem as funções oficiais do exército e para governarem as províncias, assim, passaram a ter importante papel de voto na Assembléia. Os dois grupos tornaram-se a força do Estado e seus interesses opostos eram os únicos que enfraqueciam o sistema republicano. Dessa forma, segundo Aymard & Auboyer (1976), Cícero (106-43), durante seu consulado almejou a união das “ordens” eqüestre (cavalaria) e senatorial.
Como vemos, desde o século III a. C. a sociedade romana passou a ser dividida em três odens distintas: a senatorial (composta por proprietários de terras e magistrados), a eqüestre (composta pelos cavaleiros generais do exército) e por fim, os trabalhadores camponeses (grupo que se subdivide em livres e escravos).
Esse panorama social se intensificava com a expansão dos latifúndios e supressão da pequena propriedade. Para Maria Beatriz Florenzano (1986), esses proprietários de grandes extensões de terras passaram a buscar mão-de-obra fora de Roma, que poderia ser escrava ou livre. Entre os romanos a definição de livre, segundo Pierre Grimal (1990), era muito particular, pois, esse deveria não ser dependente de nada e de ninguém, apenas sobreviver de sua herança, essa situação gerou ociosidade entre a elite governante. Diante dessa situação, a massa escrava cresceu dentro do território romano e entre 135 e 73 a. C., conforme discorreu Florenzano, estouraram as maiores rebeliões de escravos, vistas dentro de Roma, a “última” ficou famosa por ser liderada pelo gladiador Espártaco.
Com uma massa empobrecida e o crescimento do número de escravos no meio urbano, instaurou-se uma situação de guerra civil latente e, segundo Norma Mendes (1988), foi esse contexto que instigou as tentativas “falidas” dos tribunos irmãos Graco, entre 133-122 a. C., de implantação da Reforma Agrária. Assim, o grupo dos senadores precisou recorrer aos eqüestres para terminar com os conflitos sociais e continuar o processo expansionista romano. Para tanto, em 104 a. C. o general Cario Mário, apoiador pelos eqüestres, foi eleito cônsul. De acordo com Norma Mendes, durante seu governo permitiu o ingresso de soldados sem bens, os proletários (que possuíam apenas a sua prole), estipulou o soldo e distribuiu terras entre os soldados aposentados, acabou forçado a abdicar e morreu em 86 a. C. O consideramos figura de transição entre o fim da República e a implantação do Império, justamente pela sua atuação no processo de centralização do poder.
Tradicionalmente a fundação do Império Romano é delegada a astúcia de Otávio Augusto em 27 a. C. no entanto, precisamos atentar para o processo de absolutização do poder desencadeado muito antes da ascensão de Otávio. Depois de Caio Mário no século I a. C., vemos na figura do general Lucio Sila a mais determinante no processo de desarticulação da República. Ele, de acordo com Aymard e Auboyer (1976), ascendeu ao consulado apoiado pela nobilis latifundiária e acabou proclamando-se ditador vitalício dictator rei publicae constituendae causa em 86 a. C.[3], com o auxílio do exército. Desde a Monarquia, Roma não vivenciara um governo ancorado na figura de um único homem, apesar de em seu sistema político prever a eleição de um ditador por até seis meses em caso de crise extrema.
Silas deu o primeiro passo para a fundação do Império e supressão da República, ao centralizar o poder em suas mãos. O ditador perseguiu os apoiadores de Caio Mário, confiscou-lhes o bens e excluiu-os dos cargos, aumentou o poder dos senadores e restringiu o poder da plebe. Silas conseguiu reunir em seu apoio o senado e o exército e com o aumento do poder do último deu início a uma nova forma de governo público. Em face da absolutização do poder, Cícero, conforme Aymard e Auboyer (1976), se levantou em defesa da República e dois anos depois em 79 a. C., Lucio Sila deixou o poder.
A República voltou à normalidade até que em 59 a. C. foi eleito o primeiro triunvirato, uma aliança informal, entre o cônsul Júlio César, Pompeu, o Grande e Marco Licínio Crasso. Ao contrário do segundo triunvirato esse não tinha valor jurídico. Mas, logo a união se desfez, Crasso foi assassinado pelos Persas em uma batalha desastrosa e a amizade entre Pompeu e César ficou abalada com a morte de Júlia.[4]
Segundo Ohlwailer (1990), Pompeu aproveitou-se da ausência de César, que estava em campanha na Gália, para fazer alianças e eleger-se único cônsul. Ao saber do ocorrido em Roma, César reuniu seus exércitos e marchou contra Roma. Pompeu ao perceber que perdia a batalha fugiu para o Egito aonde foi assassinado. Insatisfeito com o desfecho César seguiu-o até o Egito, aonde recebeu em uma bandeja sua cabeça. Indignado por ver um romano profanado, lutou contra o Egito, conquistou-o e colocou Cleópatra no trono em 47 a. C. Em seu retorno para Roma venceu várias batalhas e entrou na cidade vitorioso. Auto proclamou-se ditador vitalício/perpétuo. Em seus dez anos de governo tornou-se popular por suas ações, distribuiu terras aos soldados, reduziu as dívidas dos camponeses, construiu prédios públicos, modificou o calendário romano[5] e emitiu moedas com sua esfinge. Assim como era amado pelo povo devido as suas atitudes, se tornou odiado pelo senado que o via como ameaça à continuidade de seus interesses, por isso conspiraram e o mataram.
O senado se viu em condição difícil, pois o povo esperava um sucessor indicado por César. Diante dessa situação, Marco Antônio aspirando ao poder e como um dos principais generais de César, leu seu testamento, no qual o cônsul morto o teria indicado, juntamente com Otávio, neto de sua irmã e seu filho por “adoção”, como seus herdeiros. Assim, formou-se o segundo triunvirato, com os generais: Marco Antônio, Lépido e Otávio. Este triunvirato, segundo Aymard e Auboyer (1976), foi uma aliança política formal, com o nome oficial de Triunviros para a Organização do Povo (em Latim: Triumviri Rei Publicae Constituendae Consulari Potestate). Tornou-se legal pela Lex Titia e aprovado pela Assembléia do Povo, conferindo poderes universais aos três homens por um período de cinco anos. Pelo período de crise em que se encontrava a República após o assassinato de Júlio César, justificou-se a constituição do segundo triunvirato e atribuição de poderes excepcionais a António, Otávio e Lépido.
No entanto, Lépido acabou eliminado progressivamente e o “Império” que nascia foi dividido entre Marco Antônio que ficou com o Oriente e Otávio então chamado César que ficou com o Ocidente parte da África e Sicília. Marco Antônio envolveu-se com Cleópatra, o que desagradou o senado e a Otávio. O então cônsul do Ocidente, Otávio, com a morte de Fulvia esposa de Marco Antônio, o fez casar com sua irmã Otaviana, com o intuito de trazê-lo novamente para Roma. O que de fato não ocorreu, pois, Marco Antônio não deixou o Egito.
O senado indignou-se quando Marco Antônio casou-se no Egito com Cleópatra e ofereceu-lhe parte do território anexado por Roma. Otávio aproveitou-se do posicionamento do senado e declarou guerra contra Marco Antônio e Cleópatra. O Cônsul romano acabou vitorioso na Batalha de Ácio em 31 a. C. Diante da derrota Marco Antônio morreu entregue as bebidas e Cleópatra com sua morte e o assassinato de seu filho Cesário, suicidou-se com a mordida de um cobra. A vitória foi completa, o Egito definitivamente caía nas mãos de Roma e Otávio não tinha mais adversários, o caminho para a fundação de um Império estava livre.
Segundo Aymard e Auboyer (1976), Otávio procurou manter a estrutura republicana do governo, por isso, em Roma governava como cidadão e nas províncias como general. O senado cumulou-o de títulos e poderes.
1. Poder Tribunício: tornava-o o imperador sacrossanto e inviolável.
2. Império Proconsular: dava-lhe o comando absoluto do exército em todas as províncias.
3. Pontífice Máximo: conferia-lhe a chefia da religião romana.
4. Princeps Senatus: dava-lhe o privilégio de primeiro cidadão do Estado e o direito de governar o Senado.
5. Imperator: título reservado a generais vencedores e conferido a Otávio pelos soldados.

Entretanto, o título decisivo para o fim da República foi o de Augustos (escolhido dos deuses), o qual recebeu em 27 a. C. Esse fato inaugurou o culto ao imperador e o início do principado. A partir da institucionalização do culto ao imperador, os romanos passaram a cultuá-lo em casa, além de seus ancestrais. Augusto fez inúmeras reformas que mudaram para sempre a antiga organização republicana e que foram contundentes para o cenário medieval que se formaria mais adiante. Uma das mudanças importantes foi a hierarquização da sociedade a partir do critério econômico, ou seja, os cidadãos teriam direitos proporcionais aos seus bens. Como podemos ver, ele institucionalizou as três ordens sociais, o que a sociedade já concebia, chamadas: Senatorial, eqüestre e inferior. Além disso, ele encorajou as famílias a retornarem ao campo e dividiu as províncias em militares e civis, governadas indiretamente pelo Imperador e diretamente por seus designados. Conforme o que já tratamos, notemos que até os princípios do século I d. C., já temos cinco importantes ingredientes para formação das bases feudais:
1. A formação de uma sociedade de ordens
2. A centralização do poder nas mãos do princeps
3. A união do Estado e da Religião
4. A ruralização da população
5. A divisão dos territórios em civis e militares: governados pelo Imperador e por seus governadores os legati Augusti (legados de Augusto), homens fiéis a ele.

Entretanto, ainda faltavam alguns ingredientes fundamentais que somente seriam agregados com a ascensão do cristianismo e a chegada dos povos “bárbaros”. Sendo assim, o Império fundado por Augusto continuava a desenvolver-se e a ampliar seus territórios. Para Otto Alcides Ohlweiler (1990), as bases do feudalismo somente foram estabelecidas durante o governo de Diocleciano e de Maximiano entre os séculos III e IV d. C. No entanto, como vimos até aqui, essas características basilares já vinham em formação desde a crise da República romana.
1.3 A ERA DOS IMPERADORES: AS DINASTIAS

No século I d. C., após a morte de Augusto, Tibério seu filho adotivo o sucedeu. Esse foi considerado um bom administrador, apesar de déspota, começou a ter problemas quando dissolveu a assembléia do povo e foi acusado pelo assassinato do general Germanicus. Iniciou, então, uma série de perseguições que somente pararam quando Calígula, filho de Germanicus, assumiu o governo em 37 d. C., após a sua morte. Ele restabeleceu a Assembléia do Povo e o atendimento as províncias. Calígula por ser sobrinho-neto de Tibério, pois seu pai Germanicus era sobrinho do mesmo, deu continuidade a dinastia Julio-Claudiano fundada em 14 d. C. e que terminaria com Nero em 68 d. C. Calígula após muitos sinais de loucura, marcados por seu estilo oriental e por sua fixação em vestir-se de Júpiter ou Apolo, o levaram a ser assassinado pela guarda pretoriana. Quem assumiu, conforme analisou Ohlweiler, foi Cláudio, seu tio, casado com sua irmã Agripina, a jovem, mãe de Nero Cláudio César Augusto.
Efetivamente, Cláudio reinou entre 41 e 44 d. C. e ficou conhecido como um imperador fraco, e ao que parece era Agripina que governava de fato. No entanto, durante seu governo favoreceu a ascensão dos cavaleiros. Sua esposa Agripina, tradicionalmente, foi acusada pela historiografia romana de conspirar sua morte para colocar seu filho Nero no poder, em detrimento do filho legítimo de Cláudio. Assim, após a morte de Cláudio em 54 d. C., Nero assumiu e durante os cinco primeiros anos fez um bom governo, auxiliado pelo filósofo Sêneca e pelo General Burrus integrante de sua guarda pretoriana. Segundo Aymard e Auboyer (1976), depois desse período Nero foi consumido por uma paranóia e revelou-se um tirano perverso, mandou matar sua mãe, seu irmão Britanicus, a primeira esposa e sua segunda esposa Otávia, filha do imperador e seus mestres Sêneca e Burrus. Esse contexto de perseguição gerou revolta no exército e no Senado e Nero acabou suicidando-se, em 68 d. C.
Ainda em 68 d. C., começou na Gália uma crise militar, pois com a ascensão da ordem eqüestre, cada exército acreditou poder indicar o imperador. Instaurou-se um estado de Guerra Civil e o exército dividiu-se em três frentes: o exército do Reno – com soldados gauleses; do Oriente com soldados da Ásia e a frente do Danúbio. Seus generais aspiravam ao cargo de imperador e por isso chegaram a ser proclamados quatro imperadores simultaneamente. Toda essa convulsão militar somente acabou quando as três frentes militares se uniram para proclamar Tito Flávio Vespasiano imperador em 69 d. C., o iniciador da dinastia dos Flávios que durou até 96 d C.
Vespasiano, como ficou conhecido, pertencia ao exército do Oriente, oriundo da cavalaria, assumiu o Império em Guerra Civil e restaurou a paz. Como proposta para impedir outra convulsão militar e civil na futura sucessão imperial, Vespasiano cedeu ao seu filho Tito o Poder Tribunício e o Impérium Procunsular, como forma de integrá-lo ao governo e faze-lo conhecido entre o exército. A primeira tarefa que concedeu ao seu filho Tito foi terminar com os levantes de judeus na Gália e na Judéia.
Os conflitos entre o Império romano e os judeus foram desencadeados durante o governo de Calígula, pois até então os judeus tinham diversos privilégios como a preservação de seu culto monoteísta e a permissão para não cultuarem o imperador. O problema iniciou quando Calígula ordenou que fosse colocada sua estátua dentro do templo em Jerusalém, mas, diante do perigo de insurreição na província acabou suspendendo a ordem. Durante o governo de Nero, em meio a desestabilidade do governo, em 66 d. C., os judeus deram início a Guerra pela libertação da Judéia, contra Roma. A guerra foi controlada em 70 d. C., quando Tito destruiu Jerusalém, seu Templo e dispersou seus habitantes, a chamada diáspora judaica. Seu pai Vespasiano conseguiu restaurar as finanças do Império, segundo Edward Gibbon (2005), através do aumento de impostos e da limitação dos gastos públicos, uma de suas grandes obras foi a construção do Coliseu.
Após a morte do Imperador Vespasiano, Tito assumiu por um curto período entre 79 e 81 d. C., considerado um ótimo governante, foi durante seu reinado que o Vesúvio soterrou Pompéia e Herculano. Em 81, seu irmão Domiciano tornou-se Imperador, procurou governar como soberano absoluto e foi duro com os senadores, filósofos, cristão e judeus. Durante seu reinado os cristãos foram perseguidos com aspereza. Empenhou-se em defender as fronteiras do Império no Danúbio, Reno e Bretanha. Esmagou a revolta do chefe da Germânia Superior e acabou assassinado durante uma conspiração palaciana. Encerrou-se assim a dinastia dos Flávios.
Como forma de impedir revoltas, o Senado elegeu o senador Marco Coceio Nerva em 96 d. C., oriundo da Gália, que governou até 98 d. C. e adotou Trajano como filho, para sucede-lo. Sua dinastia foi chamada de Antoninos devido ao legado de Antônio Pio e é considerada pela Historiografia como o período do apogeu do Império. Seu rápido governo se deveu a sua idade avançada e apesar disso foi considerado um bom imperador.
Trajano subiu ao trono em 98 e permaneceu até 117 d. C. era general e governador da Germânia Superior. Tornou-se popular por ter suavizado a tributação, introduzido o crédito agrícola a juros baixos, com benefícios para os pobres, também por ter empreendido conquistas militares, anexado a Dácia, guerreado com o Império Parta e anexado a Armênia e a Alta Mesopotâmia. Como sucessor, após sua morte, Trajano teria deixado Adriano, adotado em seu leito de morte.
Adriano reinou entre 117 e 138 d. C. e teve que enfrentar nova revolta dos judeus entre 132 e 135 d. C. Adriano conseguiu acabar com a insurreição, segundo Otto Alcides Ohlweiller (1990), inúmeros judeus foram mortos, os sobreviventes foram proibidos de permanecerem na Judéia, senão uma vez ao ano. A província foi rebatizada de Síria Palestina e outros povos foram encorajados a habitarem a região. Após essa segunda expulsão os judeus somente retornaram a região em 1948 com a criação do Estado de Israel pela ONU. Seu sucessor foi Antônio Pio que reinou entre 138 e 161 d. C. adotou o codinome Pio, por suas ações consideradas piedosas como o conjunto de leis que escreveu para proteger os escravos e a reforma do código penal na qual declarou que todo acusado é inocente até que se prove sua culpa. Também procurou fortalecer os cultos tradicionais.
Seu sucessor diferenciou-se dos demais imperadores por ser um filósofo da matriz estoicista, Marco Aurélio, que reinou entre 161 e 180 d. C. Marco Aurélio escreveu Meditações, obra de reflexão filosófica estoicista. Seu governo foi marcado pelas guerras no Oriente que trouxeram grandes epidemias a Roma. Tinha como ideais, segundo Aymard e Auboyer (1976), a justiça e a bondade. Buscou proteger os órfãos e os pobres, no entanto, perseguiu os cristãos. Para ele a razão e a inteligência humana deveriam ser privilegiadas e Deus era uma necessidade intelectual, ao contrário do que os romanos defendiam, pois para eles os deuses eram uma necessidade moral. No entanto, conforme análise de Ohlweiler, Marco Aurélio chegou a pedir ajuda de Deus para viver de modo adequado. Em campanha enfrentou os bárbaros que tentavam invadir as fronteiras do Danúbio, acabou morrendo em batalha. Seu sucessor foi Cômodo, seu filho, em 180 d. C.
Cômodo reinou até 192 d. C. e ficou conhecido por seu mau comportamento. Desprezou o Senado e eliminou muitos de seus membros, acabou sendo assassinado numa das muitas conspirações que enfrentou. Esse imperador encerrou a dinastia dos Antoninos, que ficaram conhecidos como autocratas.
Durante o reinado de Cômodo o cinturão defensivo de Roma foi dividido em quatro frentes, lideradas pelas províncias: Récia, Nórica[6], Panônia e Dácia. Nesse período Roma entrou em decadência, a prática da pilhagem tornou-se comum. A economia romana fundada no trabalho escravo entrou em crise. Em tempos remotos no Império os escravos eram escolhidos por suas especialidades, mas com as províncias elevadas a parte do território romano e seus habitantes a cidadãos, restavam apenas prisioneiros bárbaros para o trabalho escravo.
Esse cenário de crise foi herdado pela dinastia dos Severos iniciada por Septínio Severo, sucessor de Cômodo, eleito pelas legiões do Danúbio. Antes de sua ascensão ao poder em 193 d. C. outros dois aspirantes ao governo foram eleitos e mortos com 87 e 68 dias de governo.
Severo recompensou suas tropas pelo apoio. Também governou autocraticamente, desprezou o Senado e até o final de seu governo em 211 d. C., precisou do apoio do exército para manter-se no poder. Até aqui as dinastias foram amplamente sustentadas pela força do exército, o grande passo para a ascensão da “burguesia” ao poder foi dado por seu sucessor e filho, Marco Aurélio Antonio, vulgo Caracala. Esse ao decretar a Constitutio Antoniniana ou como foi conhecido o Edito Caracala em 212 d. C., que concedia ampla cidadania romana a todos os habitantes do Império forneceu apoio a aristocracia comercial e contribuiu para sua ascensão ao cenário político. Essa atitude desprivilegiou o exército que acabou assassinado-o em 217 d. C., assim como Severo Alexandre o último dos imperadores da Dinastia dos Severos, que foi assassinado durante um motim em 235 d. C. Entre Caracala e Severo Alexandre, o Império romano teve dois governantes: Macrino (217-218 d. C.) foi assassino de Caracala e reinou brevemente e Heliogábalo (218- 222 d. C.) que assumiu com apenas 14 anos de idade e ficou conhecido por seu comportamento excêntrico.
Durante a dinastia dos Severos, o Senado foi reduzido a conselho municipal de Roma e o imperador era visto como um soberano do tipo oriental, apoiado na burocracia e não pelo exército. Nesse contexto, o Império passava grandes dificuldades econômicas, as camadas urbanas ruralizaram-se fugindo da tributação e a falta de dinheiro obrigava o governo a emitir moedas, o que causou grandes ondas inflacionárias.
Sendo assim, entre 235 e 268 d. C. o Império entrou em “anarquia” militar, com sagrações e derrubadas sucessivas de imperadores, foram cerca de vinte e seis governantes em apenas 33 anos. Na lista a seguir indicamos apenas os principais:
1. Maximino I ou Trácio - (235-238 d. C.)
2. Giordano I (238 d. C.) governou por apenas 3 semanas, foi proclamado imperador pelas províncias da África, mas acabou derrotado pelo procurador da Numídia.
3. Giordano II (238 d. C.) filho de Giordano I, morreu logo após o pai, na defesa de Catargo.
4. Pupieno e Balbino (238)
5. Gordiano III (238 - 244) (trono reclamado po Sabiniano 240)
6. Filipe, o Árabe (244 - 249) (trono reclamado por Pacâncio 248, Iotapiano 248, e Silbanaco)
7. Décio (249 - 251) (trono reclamado por Prisco 249 - 252, e Liciniano 250)
8. Herénio Etrusco (251)
9. Hostiliano (251)
10. Treboniano Galo (251 - 253)
11. Emiliano (253)
12. Valeriano I (253 - 260)
13. Galiano ou Galério (260 - 268) (trono reclamado por Ingénuo 260; Regaliano 260; Macriano Maior, Macriano Menor e Quieto 260261; Mússio Emiliano 261 - 262; e Auréolo 268) filho de Valeriano, durante o reinado de ambos o Império passou por uma fase realmente caótica.

Após a fase chamada de anárquica pela Historiografia, uma sucessão de Imperadores Ilíricos[7] chegaram ao trono. Considerados patriotas lideraram o movimento recuperaror do Império e apesar de permanecerem pouco tempo no poder, devido a continuidade das conspirações palacianas, conseguiram formar uma plataforma legislativa e admistrativa que serviu de base para a profunda reforma econômica realizada por Diocleciano. Procuramos aqui listar apenas os principais governantes do período, conforme análise de Edward Gibbon (2005):
1. Cláudio II, o Gótico (268 - 270) foi o primeiro governante ilírico e o responsável pela derrota decisiva dos Godos que pressionavam as fronteiras do Danúbio. Morreu de peste oriunda do campo de batalha.
2. Aureliano (270 - 275) (trono reclamado por Domiciano 270 - 271, e Septímio 271) também se destacou por defender as províncias do Danúbio e a Itália contra os Alamanos. Durante seu governo, impôs rígida disciplina ao exército e conseguiu unificá-lo, restaurando a unidade do Império, inclusive com a re-anexação da Gália e da Síria.
3. Tácito (275 - 276)
4. Floriano (276)
5. Próbo (276-282) (trono reclamado por Saturnino 280, Próculo 280, e Bonóso 280) juntamente com Caro (282-283), seu sucessor, deram continuidade na defesa das fronteiras, empreendeu grande campanha contra os persas, mas ambos foram assassinados por seus soldados. A tradição conta que Caro foi morto em campanha por um raio.
6. Carino (283-285) (co-imperador: Numeriano) filho de Caro, durante o retorno das tropas em campanha preocupou-se em entreter a população romana com jogos espetaculares. Desta forma, o exército em seu retorno investiu da “púrpura imperial” ao general Diocleciano, o que desencadeou um grande conflito entre os dois, que somente teve fim com o assassinato de Carino por uma amante insatisfeita, esposa de um senador.
7. Diocleciano (285-305 d. C.) para muitos a data de início de seu reinado é 284, ano em que foi investido pelas tropas imperador, no entanto, aqui optamos pela datação proposta pelo historiador inglês Edward Gibbon, ou seja, 285, ano em que Carino foimorto. Diocleciano foi considerado o mais ambicioso e bem sucedido entre os últimos imperadores de Roma.
Diocleciano foi o imperador que conseguiu em partes reorganizar o Império, mas o cenário político-econômico herdado por ele não foi fácil. Ele residia em Nicomédia e ao assumir o trono em 284 d. C., tomou como auxiliar Maximiano. Cada um tomou para si um lugar tenente. Diocleciano (1º Augusto) a Galério (César), ambos no Oriente e Maximiano (2º Augusto) a Constâncio Cloro (César) ambos responsáveis pelo Ocidente. Diocleciano estabeleceu essa estrutura administrativa com o intuito de melhor defender as fronteiras do Império e assim fundou a primeira Tetrarquia romana. Os quatro líderes tiveram como responsabilidades resolver os problemas políticos e econômicos pelos quais passava Roma.
Durante o século III o território romano foi assolado pelas invasões de tribos nórdicas em conseqüência da desestruturação e indisciplina do exército romano. De acordo com Marvin Perry,
No século III, houve significativa deterioração na qualidade dos soldados romanos. A falta de lealdade a Roma e a sede de saques levaram os soldados a usar suas armas contra os civis e para impor e depor imperadores. (...) Desde 235 até 285, grassaram os motins militares e guerras civis, e muitos imperadores foram assassinados. O exército negligenciava seu dever de defender as fronteiras e perturbava a vida interna do Império. (...) Aproveitando-se da anarquia militar, as tribos germânicas atravessaram a fronteira dos rios Reno e Danúbio para saquear e destruir. (PERRY, 1999:118-119).

Essa situação obrigou as províncias e povoamentos distantes a se organizarem para a defesa a partir de meios próprios, o que cooperou para fortalecer os senhorios locais. Assim, o Império antes ancorado sobre os centros urbanos e disseminador da “alta civilização”, conforme analisado por Perry, estava em processo de destruição e uma nova sociedade ruralizada nascia.
Entretanto, além das ameaças de invasões, saques, destruição das cidades e interrupção do comércio, o Império ainda sofria com a queda da produção agrícola gerada pela crise escravista, ou seja, a desqualificação da mão de obra escrava e baixa produtividade, conforme já analisado anteriormente. Segundo Leonel I. A. Melo (1984), essa crise econômica forçou o Estado a substituir o trabalho escravo pelo sistema de colonato, ou seja, transformou trabalhadores livres em colonos. Também os escravos foram transformados em arrendatários, recebiam um pedaço de terra para cultivo em troca de renda. Esse acerto entre homens livres, escravos e grandes fundiários de terras tinha como objetivo o aumento nos lucros e na produção. Ao que parece, a historiografia diverge sobre a origem do servo medieval. Para Hilário Franco Jr (1999), essa transformação de escravos e homens livres em colono foi a matiz principal para a formação da servidão medieval. Diferentemente do que propôs Maria Guerras, que defende a atuação do comitatus germânico como a principal origem para formação de uma consciência de ordem e fidelidade, assim como, da servidão. Dessa forma, indiferentemente de uma definição exata da origem do servo medieval, o que nos interessa são os indícios dos caminhos percorridos pela sociedade Ocidental da Antiguidade Tardia no processo de formação da estrutura sócio-econômica medieval.
Portanto, percebemos que além da constituição de um novo status social, o colonato, no século III, ainda tivemos um importante evento definidor do perfil do servo no medievo, pois, segundo Perry (1999), “Para assegurar a produção contínua de alimentos e mercadorias, bem como o recolhimento de tributos, o Estado exigia que os trabalhadores braçais e os artesãos não mudassem de ocupação e transmitissem seus ofícios aos filhos” (PERRY, 1999:119). Sendo assim, esses escravos e homens livres transformados em colonos, no final do século III e princípio do IV, tornaram-se servos, presos a terra que cultivavam.
Diante desse cenário e processo de ruralização, o Estado enfrentava problemas na arrecadação dos impostos necessários para reconstrução das cidades e suprimentos militares, para tanto, o governo instituiu um grupo de agentes, funcionários da cidade (curiales), responsáveis pela cobrança dos impostos e que também se tornaram presos aos seus cargos. Eles muitas vezes eram obrigados a pagar do próprio bolso a diferença exigida pelo governo em impostos. Os camponeses fugiam da terra com o intuito de escapar do pagamento.
Para resolver o problema da arrecadação dos impostos, o imperador Diocleciano entre 285 e 305 d. C., responsabilizou os grandes proprietários de terras pelo recolhimento dos impostos dos colonos em suas terras. Dessa forma, os colonos não teriam para onde servir. Essa atitude aumentou em muito o poder e influência dos proprietários de terras sobre a vida de seus arrendatários, o que em muito serviu de base para a formação da ordem dos belattores durante a Era Feudal.
1.4 O DECLÍNIO DO IMPÉRIO E O NASCIMENTO DA ALTA IDADE MÉDIA: A FUNDAÇÃO DA ERA FEUDAL

O Oriente, aonde ficou Diocleciano, foi chamado Baixo Império Romano[8] e assumiu, segundo Ohlweiler (1990), características dos impérios despóticos do Oriente Antigo. O soberano era considerado deus na terra e essa concepção ao mesmo tempo em que fortaleceu a figura do Imperador em muito acentuou a perseguição aos cristãos. O Império ainda teve duas outras tetrarquias antes da ascensão de Constantino, que tiveram respectivamente como líderes:
· Segunda Tetrarquia: Constâncio (1ºAugusto); Severo (César), ambos no Ocidente e Galério (2º Augusto) e Maximiano Daia (César), ambos no Oriente.
· Terceira Tetrarquia: Galério (1º Augusto e Maximiano Daia (César), no Oriente e Licínio (2º Augusto), Constantino (César), ambos no Ocidente.

Ao contrário da primeira sucessão, a transição entre a segunda e a terceira tetrarquia não foi calma. Após a morte de Constâncio em 306 d. C., de acordo com Gibbon (2005), ocorreram diversas conspirações que derrubaram a Segunda Tetrarquia. A Bretanha apressou-se em proclamar Constantino, filho de Constâncio, como Augusto. No entanto, conforme o estabelecido pela Tetrarquia, quem deveria ser o novo primeiro Augusti era Galério. Esse precisou chamar Diocleciano, antigo Augusto, para restabelecer a ordem constitucional em 308 d. C. O poder finalmente foi dividido entre os tetrarcas: Galério (1º Augusto), Maximiano Daia (César), no Oriente e Licínio (2º Augusto), Constantino (César), ambos no Ocidente. Licínio foi escolhido, por ser filho adotivo de Galério, para ocupar o lugar de Severo morto abruptamente em batalha contra Maxêncio e Maximiano que almejavam usurpar o poder.
Como vemos, a Terceira Tetrarquia nasceu embalada por conspirações e desentendimentos e por isso não funcionou efetivamente. Na verdade, o filho de Maximiano Daia, Maxêncio, permaneceu no poder de seus territórios e ainda conseguiu reconquistar a África em 310 d. C. Maxêncio era considerado Imperador em Roma, mesmo sem fazer parte da Tetrarquia. Tinha o povo e a guarda pretoriana ao seu lado, mas apesar de todo seu poderio, acabou morto por Constantino, na batalha da Ponte Mílvia, em 312. Como exemplo do poderio de Maxêncio em Roma e na África, temos moedas cunhadas em princípios do século IV, com sua esfinge.
Figura nº2:






Fonte: Wikipédia, a enciclopédia livre.
A tetrarquia fadada ao fracasso acabou servindo como trampulim para Constantino ascender ao poder. Pouco tempo depois do acordo de Galério com os tetrarcas, Constantino e Maximiano Daia o obrigaram a reconhece-los Augustos, pois até então eram apenas césares filis Augustorum. Essa atitude de Galério propiciou o fim da tetrarquia, que ocorreu em 311 com sua morte. Nesse ano, o governo do Império entrou novamente em crise, com a morte de Galério (1º Augusto), quatro aspirantes ao cargo passaram a se comportar como Augustos independentes: Maxêncio em Roma (o qual não era reconhecido pelos demais), Licínio em Sárdica, Maximiano Daia em Nicomédia e Constantino em Tréveris.
Após a derrota de Maxêncio, em 312, por Constantino, o império acabou divido entre ele e Licínio.[9] Constantino ficou com o Ocidente e Licínio com o Oriente. No ano seguinte, em 313, juntos promulgaram o Edito de Milão que decretou tolerânica religiosa e liberdade de escolha em assuntos religiosos por parte do Estado. Assim, Constantino passou a apoiar a Igreja Cristã e Licínio a antiga tradição mítica romana. Licínio eliminava os cristãos de seu exército e da administração. Com essa atitude intolerante, não demorou a estourar o conflito com Constantino. Esse derrotou e matou Licínio em 324 d. C. e tornou-se o único imperador Totius orbis imperator e para manter-se no poder ordenou a execução de sua esposa e filho, que apoiavam seu rival morto.
Segundo Indro Montanelli (1985), Constantino transformou profundamente a administração territorial. Instituiu uma minuciosa e complexa burocracia estatal. O novo imperador mateve a divisão do território romano em províncias, instituida por Diocleciano e a ampliou de quarenta e cinco para cem, até a Itália foi dividida, igualmente ao restante do império. Essas províncias, devido a despropiação de poder do Senado, dependiam do imperador, que as agrupou em dioceses (primeiramente doze, quatorze e a posteriori quinze) e instituiu vigários para dirigi-las. Como chefe da administração provincial, ele colocou prefeitos, juntamente com Césares, em prefeituras regionais subordinadas ao Ministro na corte. Somente as capitais Roma e Constantinopla permanceram sob a administração de seus senados, reduzinos apenas a conselhos municipais, que ocupavam lugares honoríficos, no entanto, o poder efetivo pertencia ao prefeito da cidade que dirigia os serviços administrativos. No ano em que derrotou Maxêncio, Constantino dissolveu a guarda pretoriana e a substituiu por uma guarda militar (scholae palatinae), seus cavaleiros foram chamados silenciários que formavam, juntamente com a criadagem, um numeroso grupo de pessoas que tinham contato direto com o imperador. Nesse processo de burocratização do governo, o imperador instituiu uma hierarquização entre os cargos administrativos, semelhante a do exército. Assim, os servidores do império deixaram de ser funcionários particulares do Princeps e sim do Estado.
Essa ordenação administrativa e jurídica permitiu a estabilização política e a recuperação econômica do Império. Diante dessas novas condições, Constantino criou o soldo (solidus), moeda de ouro e depois a moeda de prata, o sílico, o que constituiu uma restauração monetária durável, iniciada em 309 d. C. Ao mesmo tempo que a instituição de moedas de ouro e prata foram um grande avanço econômico para o império, também gerou a desvalorização das moedas de cobre e o consequente empobrecimento da população.
No processo de formação da sociedade feudal, Constantino deu um passo fundamental ao presidir o Concílio de Nicéia em 325 d. C., no qual rejeitaram a doutrina ariana[10] e afirmaram o Credo de Nicéia,[11] para o estabelecimento da relação entre o Estado e a Igreja Cristã. Segundo Otto Alcides Ohlweiller (1990), “Constantino, embora não se tenha convertido ao cristianismo a não ser em seu leito de morte (337), deu à Igreja cristã uma situação privilegiada. Esta transformou-se em poderoso instrumento do poder imperial (Cesário-papismo)” (OHLWEILLER, 1990:174). Esse imperador, como vimos, marcou a ascensão do cristianismo como religião do Estado romano e base da nascente sociedade feudal. Também estabeleceu juridicamente o princípio de hereditariedade para o exercício das profissões e impulsionou o processo de transformação dos camponeses livres em colonos, importantes traços definidores do feudalismo medieval.
Em 330 d. C. Constantino deu início a construção da nova capital do Império na antiga colônia grega Mégara, a qual chamou Constantinopla. Essa tornou-se a capital cristã do Império Romano no Oriente.
Entretanto, de acordo com Ohlweiler (1990), depois da morte de Constantino em 337, o Império romano entrou em uma agonia que durou cerca de 150 anos. Até a ascensão de Teodósio I, o imperador que tornou definitivamente o cristianismo a religião oficial do Estado em 395 d. C., o trono de Constantino teve cerca de quatro sucessores, que se dividiram em casas dinasticas:
1. Casa de Constantino
Constâncio II (337 - 361) (com Constantino II 337 - 340, Constante 337 - 350; filhos de Constantino).
Juliano (361 - 363). Conhecido pelo cognome "O Apóstata", devido seu rompimento com o cristianismo. Era sobrinho de Constantino. Transformou o regime autoritário dos filhos de seus primos em um liberal, condenou gastos excessivos e economizou na administração. Em 363 morreu em campanha contra a Pérsia, sem deixar sucessor.
Joviano (363-364) ficou no poder por oito meses, por não existir sucessores homens descendentes de Constantino, ele foi eleito pela frente do exército que estava na Mesopotâmia. Mas antes mesmo de chegar a Constantinopla foi substituído pelo general Valentiano I.
2. Dinastia Valentiniana
Valentiniano I (364 - 375) (co-imperador Valente 364 - 378); dividiu o império da mesma forma que os filhos de Constantino, com seu irmão Valente, cada um legislava em seus domínios e pela primeira vez o Império do Oriente distancio-se do Ocidente. Valentiano I morreu subitamente durante uma guerra na fronteira do Danúbio e seu irmão desapareceu tragicamente em Adrianópolis numa batalha contra os bárbaros em 378 d. C.
Graciano (375 - 383) (co-imperador Valentiniano II, 375-392); filho de Valentiano I foi aclamado Imperador e Valentiano II, seu meio irmão, co-imperador.
3. Casa de Teodósio
Teodósio I (379 - 395) (trono reclamado por Eugénio 392 - 394)

Essa turbulenta sucessão imperial degradava o Império, que enfraquecido estava à mercê das hordas invasoras. No final do século IV uma nova onda de invasões assolou o Império, que já estava muito abalado devido às guerras sucessórias, pestes e a constante defesa de suas fronteiras. Em 375 d. C., segundo Maria Guerras os Hunos vindos das fronteiras da China empurraram os godos e visigodos para além do limes do Império. Diante da pressão desses povos “bárbaros” que buscavam dentro do território romano proteção e abrigo, a vida econômica se desintegrava e os únicos pontos seguros do Império tornaram-se as vilas dentro de grandes domínios defendidos por seus próprios donos, mercenários e seus colonos.
Durante o reinado de Teodósio I, o Império Romano do Ocidente recebeu os temperos finais para a formação das bases feudais, o cristianismo como religião oficial do Estado, o término do processo de ruralização e a definitiva, porém lenta, supressão da escravidão e do colonato pela servidão. Segundo Ohlweiler, “De fato a servidão expandiu-se rapidamente ao longo dos século IV e V” (OHLWEILER, 1990:174).
Ao morrer Teodósio, o Império Romano do Oriente ficou com seu filho Arcádio e o Ocidente com seu filho Honório. Esses por serem muito jovens ficaram, conforme designado por seu pai, sob a tutela do general Estilicão, quem enfrentaria uma das mais intensas invasões sofridas pelo Império.
Em cerca de cinco séculos, os povos bárbaros adentraram lentamente as fronteiras do Império, porém no final do quarto século, essas paulatinas migrações se tornaram agressivas e fizeram jus a nomenclatura recebida: Invasões.


CONCLUSÃO
Como vimos, a Era Feudal não nasceu no Século V de nossa era, como tradicionalmente tratado pela historiografia, mas foi produto de uma paulatina transformação política, social, econômica e religiosa do Império romano. Nesse processo, foram fundamentais: a ruralização social, a supressão da pequena propriedade, a formação da mentalidade de ordens, dos grandes domínios fundiários, o fortalecimento dos senhores locais e do conceito de servidão hereditário, a divinização do imperador, a legalização da religião cristã e finalmente, a união entre Estado e Igreja. A partir dessas principais características, podemos perceber as linhas que traçaram os rumos da Era Feudal.
Assim, se ainda entre as primeiras dinastias imperiais romanas após o governo de Augusto, a liberdade ou libertas, não era mais entendida em seu sentido máximo, mas, adquirira um novo sentido, conforme analisou Pierre Grimal (1990), no qual ela é entendida apenas como uma consciência e não como independência e ação, no decorrer da Era Feudal, ela se tornou apenas um conceito que designava a dignidade humana, pois cada ordem tornou-se prisioneira de sua própria mentalidade.

BIBLIOGRAFIA
AYMARD, Andrè & AUBOYER, Jeannine. Roma e seu Império: O Ocidente e a Formação da Unidade Meiterrânica. In: História Geral das Civilizações. São Paulo. DIFEL, 1976. (vol. 4).
COLLINGWOOD, R. G. A Idéia de História. Lisboa. Editorial Presença, 1986.
FLORENZANO, Maria Beatriz. O Mundo Antigo:economia e sociedade. São Paulo. Brasiliense, 1986.
GIBBON, Edward. Declínio queda do Império Romano. Organização e introdução de Dero A. Saunders. Ed. Abreviada. São Paulo. Companhia das Letras, 2005.
GRIMAL, Pierre. Os erros da liberdade. Campinas. Papirus, 1990.
MELO, Leonel Itaussu Almeida. História Antiga e medieval: da comunidade primitiva ao Estado moderno. São Paulo. Abril Educação, 1984.
MENDES. Norma Musco. Roma Republicana. São Paulo. Ed. Ática, 1988.
MONTANELLI, Indro. História de Roma. 2 ed. Barcelona/Espanha: Plaza e Janes, 1985.
OHLWEILER, Otto Alcides. A religião e a filosofia no mundo greco-romano. Porto Alegre. Mercado Aberto, 1990.
PERRY, Marvin. Civilização Ocidental: uma história concisa. 2 ed. São Paulo. Martins Fontes, 1999.
SALLES, Catherine. L’Antiquité Romaine. France. Larousse. 2002.
VEYNE, Paul. História da Vida Privada. Direção de Philippe Áries e Georges Duby. São Paulo. Companhia das Letras, 1990. (Vol. 1).
[1] Doutoranda em História das Sociedades Ibero-americanas pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e professora de História Medieval na Fundação Universidade Federal do Rio Grande – FURG, julmatos@universia.com.br
[2] O Hectolitro é uma unidade de capacidade relativa a cem litros.
[3] O cargo de ditador estava e desuso na República, foi restituído por Lucius Sila que também terminou com a limitação no tempo de permanência na função.
[4] Júlia irmã de Cezar foi dada em casamento a Pompeu como laço de fidelidade entre os dois políticos, no entanto, o casamento de revelou feliz e Júlia passou a fortalecer o laço entre os dois.
[5] O Calendário juliano foi instituído por Júlio César no ano 46 a.C., segundo as indicações do astrónomo alexandrino Sosígenes, tendo vigorado por 1600 anos. Com a conquista de novos territórios, César sentiu a necessidade de uniformizar o calendário, já que outros eram utilizados pelos povos anexados ao império. O novo calendário passou a ser composto por doze meses, perfazendo 365 dias. De quatro em quatro anos, instituía-se um ano bissexto de 366 dias. Os meses passaram a ter 30 dias (intercalados com meses de 31 dias). O facto de, hoje, os meses de Julho e Agosto (na época, quintilis e sextilis) terem 31 dias, sendo meses seguidos, devia-se a terem o nome de imperadores. Um décimo terceiro mês, que existia, foi extinto. Foi necessário, no entanto adicionar 67 dias ao primeiro ano deste calendário. O vigésimo quinto dia de Março, data na qual começava o ano passou a ser o primeiro de Janeiro, de forma que o ano de 45 a.C. ficou conhecido como o Ano da Confusão. O Calendário juliano foi substituído pelo Calendário gregoriano a 24 de Fevereiro do ano 1582. O novo calendário foi promulgado pelo Papa Gregório XIII e foi adoptado nos países ocidentais. Na Rússia e em outras zonas de influência cristã-ortodoxa, foi optado pela permanência no calendário juliano (este é o motivo das confusões das datas na Revolução russa.

[6] A Nórica (Noricum, em latim) era uma província do Império Romano, lindeira ao norte com o Danúbio, a oeste com a Récia e a Vindelícia, a leste com a Panônia e ao sul com a Panônia, a Itália e a Dalmácia. Corresponde, aproximadamente, à maior parte dos atuais estados austríacos da Estíria, Caríntia, Salzburgo, Alta Áustria e Baixa Áustria, além de parte da Baviera, na Alemanha.

[7] São assim denominados por serem originários da região da Ilíria.
[8] Não podemos confundir com a divisão temporal em Alto Império Romano e Baixo Império Romano, pois essa não indica lugar, mas momento histórico do Império. O Alto Império é considerado o período de apogeu da civilização romana e o Baixo Império é o período de anarquia militar, de transferência da capital para Constantinopla, da elevação do Cristianismo a religião do Estado e das invasões chamadas bárbaras.
[9] Os dois já haviam oficializado sua união através do casamento de Constantino com a irmã de Licínio.

[10] Fundamentada por Ário (morto em 336), era padre em Alexandria, pregava que Cristo era filho de Deus, mas não era verdadeiramente Deus. Ário salientou a natureza humana de Cristo e a importância de seu sacrifício para o homem. Foi no decorrer dos século IV ao VII a doutrina cristã mais difundida entre os povos bárbaros.
[11] O Credo de Nicéia afirmou que Cristo era verdadeiramente Deus e valorizou sua divindade.