MATOS, Júlia Silveira. AMOR, CASAMENTO E RELIGIÃO EM ROMA. Porto Alegre, 2008

Figura nº1: Fonte - marius.blogs.sapo.pt/
Figura nº2: Fonte - Fotografia da cena do casamento do filme Nero

A ritualística do casamento ocidental contemporâneo não é uma invenção cristã como muitos podem pensar. Entre os romanos “o casamento é, pois para moça, um ato de muita gravidade, e não é menos para o esposo”. (COULANGES, 2002:46). Há muito através de relatos de Historiadores antigos ou modernos como Fustel de Coulanges, percebemos a importância da intituição do casamento na cultura romana. Segundo Coulanges, essa foi a primeira instituição estabelecida pela religião doméstica. Entretanto, essa seria a visão que temos do casamento na antiguidade? Ou sua interpretação moderna costuma romantiza-la e simplifica-la diante de seu significado no tempo? Diante de questionamentos assim, no presente artigo buscamos analisar o fundamento e o significado desse ritual no mundo romano, através dos discursos de Fustel de Coulanges[1], Eva Cantarella[2] e Ovídio[3].
1. O casamento romano
O casamento romano foi conceituado de duas formas tradicionalmente. Para o historidor romântico Fustel de Coulanges em seu “A Cidade Antiga”, casar era antes de tudo um ato religioso, “era a cerimônia sagrada”, que servia para iniciar a jovem esposa no culto doméstico do esposo, o qual iria seguir daquele momento em diante. Dessa forma, o casamento romano seria um ritual de ordenação para a futura sacerdotiza do lar.
Notemos que esta religião do lar e dos antepassados, transmitindo-se de varão para varão, não pertenceu exclusivamente ao homem, pois a mulher também tomava parte no culto. Como filha, a mulher assistia aos atos religiosos do pai; depois de casada, aos do marido. Só por isto podemos avaliar o caráter essencial do matrimônio entre os antigos. (Coulanges, 2002:46).
Assim, conforme o historiador, a moça após casada abandonava os segredos da religião de seu pai, para aprender e sacrificar aos manes[4] do marido. Portanto, percebemos que o casamento entre os romanos, segundo Coulanges, não se constituia enquanto um ato de expressão de amor, mas, religioso. Entre os historiadores da antiguidade romana foi comum designar o casamento com palavras como telos, que significava cerimônia sagrada, ao invés de gamos seu nome peculiar.
A cerimônia do casamento pertencia a religião doméstica, não era celebrada perante Júpiter, ou Juno, mas diante do deus doméstico, o qual presidia o ritual. Somente posteriormente, em meados da República, quando a religião do templo se tornou preponderante, os romanos passaram a dividir o casamento em dois momentos : primeiro sacrifiava-se aos deuses no templo, cerimônia que foi chamada de prelúdios do casamento e depois realizavam-se as cerimônias diante do lar doméstico. Essa cerimônia dividia-se em três atos: traditio, deductio in domum, confarreatio.
O primeiro ato era a traditio, a tradição de desvinculação da jovem do lar paterno, realizada pelo pai, que como proprietário do culto doméstico, era o único que tinha poder para desfazer sua vinculação. Nesse ato a jovem deixava a casa do pai.
A deductio in domum concistia no cortejo em que o marido conduz a jovem a sua nova casa, nessa lhe apresente o fogo sagrado, símbolo da dividade doméstica, e a água lustral fundamental em todos os rituais sagrados. Antes de entrar na casa definitivamete, o esposo devia tomar a jovem nos braços simulando o rapto, de forma que atravesse a soleira da porta sem que seus pés a incostem.
No terceiro momento, o confarreatio, a esposa era levada diante do fogo, ao redor do qual deveriam estar todos os deuses domésticos e as imagens dos antepassados. Alí fazem um sacrifício, a libação e pronunciam orações. Perante o “testemunho” dos deuses e dos antepassados, esposo e esposa consagravam a união quando consumiam o bolo de flor de farinha e recitavam orações, e a partir desse instante uniam-se no mesm culto. A mulher casada ocupava o lugar de “filha de seu marido”, filiae loco, no dizer dos juriconsultos, pois passava a pertencer totalmente ao seu esposo. Na figura nº1 podemos obsevar a representação do momento em que os noivos partiriam o pão.
Conforme analisado por Fustel de Coulanges, o casamento romano não concistia em um ritual único. Mas, em um conjunto trino de atitudes da noiva e do noivo. O cinema em muito reelaborou essa imagem do casamento em Roma, conforme podemos observar na imagem nº2, cena do filme Nero, na qual o pai da noiva, imperador Claudio, partiu o bolo de flor de farinha e entregou seus pedaços aos noivos, conforme a figura nº2.
Após o fim desse conjunto ritualístico a mulher casada, segundo Coulanges, passava a participar da religião do marido. Mas, essa era a única forma de constituição do casamento? Claro que não, também existia a união por usus[5] e por coemptio[6], as quais o direito romano cedo permitiu a dissolução, enquanto que o divórcio do casamento religioso sempre foi mais dificultado. Para esse, entre os romanos, era necessária nova cerimônia ao redor do fogo sagrado, diante de testemunhas familiares e de um sacerdote, na qual esposo e esposa rejeitavam o bolo de flor de farinha que os unira.
Entretanto, em uma segunda conceituação, o casamento é apresentado como um ritual feminino de passagem para a vida “adulta”. A Historiadora Eva Cantarella, em sua obra “Pasado próximo: Mujeres romanas de Tácita a Sulpícia, argumentou que as pesquisas arqueológicas de Lavínio apontam para a possibilidade que tenha existido um momento na História romana em que as núpcias identificassem-se com o rito de passagem da infância para a puberdade[7].
Diante dessas duas conceituações é inegavel o caráter ritualístico da cerimônia do casamento, no entanto, ao contrário da constante romantização das relações apresentada pelo cinema, precisamos levar em conta que o casamento, segundo Coulanges, não se desvinula para os romanos de sua religião e “Esta religião ensinou ao homem que a união conjugal é bem mais que relação de sexos ou afeto passageiro, unindo os dois esposos pelo laço poderoso do mesmo culto e das mesmas crenças”. (COULANGES, 2002:52). Sendo assim, antes de um ato de amor era um ritual divino e tradicional que visava a continuidade e a manutenção da religião doméstica.
Entretanto, poderíamos questionar: O casamento como ritual anulava as relações amorosas? Claro que a resposta é não. Historicamente seria difícil tal afirmação, no entanto, em Ovídio, Arte de Amar, temos a conceituação do amor romano como aquele que desemboca no sexo, conforme nos afirmou o professor Harry Bellomo. Para o romano, o conceito de amor, platônico, contemplativo era inexistente. Segundo Bellomo, “Para os romanos o amor é um sentimento muito forte, muito poderoso, eles não descartavam o sentimento, mas o importante era o sexo”. (BELLOMO, 2006:158). Essa conceituação se distancia da proposta de amor cristão que de forma independente se completa no ato sexual. Como testemunharam a obra de Ovídio e muitos murais de Pompéia, a complexificação das relações homem/mulher pelo amor eram descartadas pelo romano em prol de uma vida prática de prazeres. Dessa forma, o casamento não era a materialização do amor, mas, a perpetuação do rito religioso e da espécie.
BIBLIOGRAFIA
BELLOMO, Harry R. Amor e sexualidade na Roma Antiga. In: FLORES, Moacyr (org.). Mundo Greco-romano, O Sagrado e o Profano. Porto Alegre. EDIPUCRS, 2006.
CANTARELLA, Eva. Pasado próximo: Mujeres romanas de Tácita a Sulpícia. Valência. Ediciones Cátedra, 1997.
COULANGES, Fustel. A Cidade Antiga. São Paulo. Editora Martin Claret, 2002.
FERRO, Marc. A história vigiada. São Paulo. Martins Fontes, 1989.
FLORENZANO, Mª Beatriz. O mundo antigo: economia e sociedade. São Paulo. Editora Brasiliense, 1986.
VAINFAS, Ronaldo. Casamento, Amor e Desejo no Ocidente Cristão. 2 ed. São Paulo. Editora Ática, 1992.
[1] Fustel de Coulanges (1830-1889) foi um historiador francês que ocupou a cadeira de História da Idade Média na Sorbonne e dirigiu a École Normale Supérieure.
[2] Eva Cantarella é historiadora, publicou a obra Pasado próximo: Mujeres romanas de Tácita a Sulpícia, em 1996 pela Gianciacomo Feltrinelli Editore.
[3] Publius Ovidius Naso, poeta e historiador Romano que escreveu a Arte de Amar. Nasceu em 20 de março de 43 a.C. em Sulmo, atual Sulmona, em Abruzos, Itália.
[4] Na mitologia romana, os Manes eram as almas dos entes queridos falecidos. A sua veneração está relacionada com o culto aos antepassados. Como espíritos menores, estavam também relacionados com os Lares, os Genii e com os Di Penates. Eram honrados durante a celebração das Parentalia e das Feralia, em Fevereiro.
[5] O casamento também podia consumar-se mediante o usus, esse era o reconhecimento se a mulher vivesse com o marido durante um ano sem ausentar-se por mais de três noites.
[6] O casamento tomava a forma de coemptio, uma modalidade simbólica de compra com o consentimento da noiva.
[7] Em conclusión, las excavaciones de Lavínio no se limitan a suministrar confirmación histórica de la existencia en el Lácio de cambios públicos de status. Además apuntam la possibilidad de que haya existido un momento en la historia de Roma en que las nuptiae se hayan identificado con el rito ciudadano de tránsito de la edad púber”. CANTARELLA, Eva. Pasado próximo: Mujeres romanas de Tácita a Sulpícia. Valência. Ediciones Cátedra, 1997, p. 58.